Ela tinha dificuldades com cálculo
Ela tinha os cabelos dourados e compridos, ou melhor amarelos quase brancos. Isso chamou minha atenção em um primeiro momento, aliás, era impossível não notá-la em uma classe majoritariamente de homens com 2 garotas e cerca de 50 caras esquisitos. Quando a ví pela primeira vez, pensei: O que será que essa garota com essa beleza toda está fazendo em uma classe de estudantes de engenharia onde a esquisitice dominava a todos, iríamos fazer cálculos e tentar exercitar a lógica por mais alguns anos o que era totalmente prazeroso para nós, mas um tanto chato e até enlouquecedor para muitos humanos “normais”.
— Acho que não vou aguentar esse segundo ano Tato, só duas meninas na sala…
Renée era, digamos o suprasumo dos nerds: cabelos compridos sem corte, sempre oleosos, unhas compridas e sujas, calças batendo no meio das canelas e falando o seu portugues misturado com frances em um aprendizado atabalhoado de nossa lingua. Eu tentava incentiva-lo… — Olha, Renée, veja o lado positivo. Vi muitas meninas lá no pessoal de humanas, tinha loira, morena, para todos os gostos…
A essa altura do campeonato eu falava para as paredes, pois ele já não me ouvia. Renée era bom nisso, em lançar idéias, dúvidas, frases perdidas, falar de suas necessidades e depois simplesmente abstrair-se, ficar só de corpo presente e ausentar-se do lugar.
— E essa magrela, loira e peituda, o que voce me diz? Tem só ela e aquela outra nerdizinha alí na frente. Quem a gente vai convidar para as cervejas da sexta? — Perguntou e sorriu seu sorriso ironico e malandro.
— Aula de cálculo amigão. Trouxe a calculadora ou esqueceu de novo? — perguntei, chamando meu amigo de volta ao tempo e ao espaço… e a responsabilidade.
Ser amigo de Renée significava também adotá-lo, porque o pobrezinho perdia e esquecia tudo. Eu já havia o suportado e ajudado de todas as formas possíveis por um ano, mas essa digamos sina e paciencia, estava em seus limites. Será que eu aguentaria por mais um ano Renée?
— Posso sentar com voces? — Ela perguntou baixinho para não chamar a atenção da classe inteira — Sou péssima em cálculo e vocês parecem que estão entendendo tudo direitinho.
Seu riso era aberto, olhos puxados e os cabelos e amarelos e longos, como já comentei, tão amarelos que dependendo do angulo pareciam brancos. Lara tinha seus olhos ora verdes, ora azuis. Essa foi a primeira vez que nos falamos. Era um dia que estava muito cansado, o trabalho no escritório da construtora me esgotava. Encarar ainda uma aula do Marques não era muito animador. Bem, a presença dela modificava o começo das aulas. Havíamos sido premiados, pois Lara não se sentava com ninguém, não olhava ao redor e permanecia com sua eterna cara de dúvida em todas as aulas, eu e Renée riamos as escondidas de sua carinha inocente de interrogação.
— Bem, eu…
Lara me olhava diretamente, e, de repente, eu não sabia para onde desviar o olhar com seus olhos me fuzilando. Tentei mirar o chão, para os lados mas continuava ali, impassível, olhando diretamente para mim.
— Não liga não para o Tato. Ele é meio nerd, meio desaparafusado mesmo — disse Renée
Tinha que lidar com um novo problema agora, como acompanhar o andamento da aula com ela sentada bem ao meu lado? O que ela, com aquele seu cheiro, sorriso e aquele brilho só dela estaria fazendo eli em nossa população de “esquisitos”?
A partir daquele dia, passamos a sentar juntos sempre e foi a primeira vez que saímos para tomar nossa famosa cerveja das sextas, nesses momentos conseguiamos falar um pouco de nossos sonhos, além de aulas, matéria e faculdade. Nosso grupo foi aumentando, chegaram Rodolfo, Nei, Fabrício, Charles… Então, nos tornamos uma pequena legião de uns 8 caras esquisitos e uma bela moça entre nós. Lara, passou então a ser nossa bela amiga, sempre ao nosso lado, irradiando simpatia em seu metro e oitenta de pura beleza.
Acredito que Lara não seria a melhor das engenheiras, não era brilhante nos estudos, tinha muitas dificuldades em acompanhar, dependia muito de nós. Passei muitas horas explicand o básico de circuitos, automação e eletrônica. Para ela uma missão árdua, mas no final, quando aprendia não esquecia mais.
— Não tenho a facilidade que voces tem para tanto cálculo, que saco viu Bonito. Você tem que ter paciencia comigo — dizia isso e me olhava com aquele seu olhar encantador.
Aos poucos fui me acostumando com seu jeito, sua maneira toda atenciosa, parava o que estava fazendo para ouvir e olhar de forma sorridente, tinha uma forma carinhosa de respeito com toda pessoa que estivesse ao seu lado.
Os movimentos de Lara eram sempre leves e suaves, lentos como se todos os seus gestos desenhassem uma forma no ar e suas mãos eram pinceis tintas pintando e desenhando tudo a sua frente.
— Pessoal, vai ter uma festa de uma barbie da economia. Via ter uma montanha de meninas. Vamos todo mundo? dizia Rodolfo, o estabanado de nossa turma. Ele me deixava irritadíssimo com esse jeito todo atrapalhado, sua falta de discrição, não sabia conversar baixo, não guardava segredos, sempre espalhando tudo o que ouvia aos gritos.
— Vmos lá para esse festa Tato? O que voce acha? — Renée, pobrezinho com aquele seu jeito todo desengonçado, tinha muita vontade de conhecer a vida além de nossa sala de aula, do nosso grupo e das fronteiras da universidade, mas eu não tinha lá grandes esperanças que ele travasse grandes contatos alem da universidade.
— Vamos Bonito? — Lara tinha essa mania de chamar todo mundo de “Bonito”, até Firmino, nosso professor mais ranzinza, já tinha desistido de corrigi-la. Era impossível qualquer coisa que não fosse de acordo com o que Lara desejava e ela simpaticamente mudava tudo de acordo com seus desejos. Ela exercia esse domínio sobre o ambiente e todos ao seu redor, era inexplicável.
O pessoal da Economia era, como dizíamos na época, filhinhos de papai, ou seja, pareciam riquinhos mimados. A casa onde a festa seria realizada era em uma rua chique, um casarão em um bairro nobre da cidade, os Jardins para ser mais exato, um bairro de gente digamos mais abastada. O casarão em arquitetura colonial, colunas greco-romanas na entrada, um jardim enorme, florido, chafarizes… Era visível a diferença de classe entre eles e nós. Nosso grupo éramos apenas nós, o restante de nossa classe literalmente esnobou o convite.
De nossa pequena turma, Lara parecia ser a única naquele momento que estava a vontade na festa. Ela dançava e eu ja a imaginava abraçando-a, olhando nos olhos, caminhando de mãos dadas, olhando silenciosamente um para o outro. Eu sabia que muitos queriam Lara como namorada…
Na volta eu dirigia meu passat velho, ela falava baixinho, eu não conseguia ouvir, ela falava baixinho e começou a cochilar em meu ombro, sentia sua respiração leve em meu braço. Eram quase 4 da manha, teria que estar acordado em 3 horas, mas isso não me preocupava. Havia um nó imenso se formando em meu peito de tanta vontade de abraça-la e não deixá-la nunca mais ir. Nessa noite eu tinha certeza que alem de apaixonado eu estava amando Lara.
— Já chegamos Bonito?
— Agora falta pouco Lara. Teve um acidente na Av. 23 de Maio que trancou o transito. Em 15 minutinhos te entrego sã e salva em casa — sorri levemente olhando seus olhos semi abertos. Meu sorriso sem graça e sem sal saiu meio forçado. Lara entre o sono e o semi-acordado mostrou seus dentes brancos e perfeitamente alinhados em um pequeno e sonolento sorriso, tentou abrir mais os olhos e tornou a fechá-los novamente. Segurou minha mão, passou um pouco da temperatura de seu corpo com seu toque, meu coração disparou. — Ela deve estar sonhando… — pensei.
O ano foi passando e, aos poucos, nos aproximamos cada vez mais, Lara me contava tudo de sua vida, os namorados, a vida em casa, seu pai diplomata e ranzinza e que não parava em casa, sua mãe que parecia não existir pois não se importava com nada e nem com ninguém, o marido canalha de sua irmã. Resumindo, acabei virando o melhor amigo de Lara. Nem sei de onde eu tinha tirado esse pensamento, sei apenas que estava feliz com nosso relacionamento de amizade e de confiança.
Montamos sem querer, uma rotina de nosso pequeno grupo, todos saíamos sempre juntos. Eventualmente íamos a festas, não éramos muito festeiros. As vezes assistíamos apresentações de teatro ou de música na própria universidade. De vez em quando íamos ao clube da universidade pegar uma piscina ou correr pelas pistas do campus.
Certo dia, em uma das festas, conheci Josefine, aluna do curso de geografia.
— Lara, Lara, Lara… Preciso de sua ajuda!
— Fale agora Bonito ou cale-se para sempre — Lara abriu um grande sorriso com seus lábios grossos, um sorriso meio maroto.
— Lara, conheci, uma garota super linda e charmosa na Geografia e pelo que ví ela se interessou também. Você não quer dar uma sondada por ai já que conhece todo mundo? — Seu sorriso se fechou, ficamos ali alguns segundos, um sentado de frente para o outro, estáticos, mudos, nos olhando, um olhar que parecia que não iria terminar.
— Lara voce esta bem? Esta tudo bem? — Ela abaixou a cabeça, ficou assim de cabeça baixa por alguns segundos e de repente pegou seu material e sem se despedir foi embora. — Gritei do fundo da classe quando ela ja estava na porta — Lara, o que aconteceu? Tem prova de Mecanica na primeira aula, esqueceu?
Em novembro, o campus se transformava, havia uma renovação, uma boa renovação no ar. Uma nova energia, tudo ficava verde e florido, esquecíamos por alguns momentos que éramos maquinas de estudar. Nos permitíamos então pequenos prazeres após as aulas, principalmente sentar na Praça do Relógio esperando o por-do-sol ou apenas caminhavamos sem compromisso pelas ruas do campus procurando alguma barraca de cachorro quente ou ficávamos na Educação Física, brincando e correndo entre as árvores.
Lara passou a me evitar de todas as formas, mudou de lugar na classe. Eu não entendia se o problema era só comigo ou com alguém de nosso grupo pois parou de falar com todos. As vezes me perguntava se em algum momento eu havia falado algo errado, se por acaso em alguma festa eu havia bebido demais e feito alguma besteira. Eu era bom nesse tipo de mancada. Com um pouco de álcool eu já havia feito muitas besteiras, nada de absurdo, mas dava um trabalho danado para consertar as coisas depois.
— Olha a loira como ta bonita hoje… — Falou baixinho Renée ao meu ouvido. Sim, ela estava sempre bela e agora bela e distante.
Final de mais um ano, íamos para o sexto semestre, ou seja, o 3o ano, nesse momento eu refletia se era aquilo mesmo o que eu queria. Adorava sempre ter os pés no chão, por isso, gostava de tudo que transmitia principalmente segurança, controle. Perguntava-me se era isso o que realmente queria ter estudado. As flores se abriam, novembro era o mes do esplendor da primavera, as árvores ficavam verdes e robustas, a grama do campus, mais verde e fofa, os pássaros se multiplicavam e no final, estavam todos mais felizes e alegres.
Parava sempre em frente ao prédio da Educação Física, gostava de ficar sentado nos banquinhos por lá, vendo os pássaros, os vendedores de churros e cachorros-quentes, os ciclistas treinando, os corredores tambem, os pássaros em seus voos rasantes…
— Sabia que voce estaria aqui Tato.
Virei bruscamente, conhecia aquela voz, era a primeira vez que ela não me chamava de Bonito. Lara chegara silenciosamente pelas minhas costas. Seus olhos, agora verdes com a penumbra do entardecer, estavam tambem ao mesmo tempo cintilantes, pareciam refletir o brilho da noite que começava a cobrir a cidade.
— Tato, como estão suas notas em cálculo?
Eu não sabia o que dizer. O coração disparou e ao mesmo tempo em que estava feliz com sua presença a insegurança bateu forte naquele momento.
Lara me olhou e sorriu um sorriso aberto, escancarado, sem fazer nenhum ruído. A rua estava movimentada. Nesse momento, meia dúzia de ciclistas passavam conversando bem alto, um corredor quase foi ao chão tropeçando em uma elevação na calçada, uma senhora passava gritando com outra pessoa que estava do outro lado da rua, as árvores dançavam no ritmo ditado pelo vento.
Ficamos olhando a dança das árvores. Sentí sua mão branca e macia por cima da minha, em seguida seu rosto encostando em meu rosto e em seguida apoiando sua cabea em meu ombro. Ficamos alí por tanto tempo que perdí a noção, apenas ouvindo sua respiração, sentindo o cheiro de seu perfume, sua marca registrada. Adormecemos ali sentados um encostado no outro.
Acordei com o barulho das pessoas entrando e saindo no prédio da Educação Física, já era o amanhecer de outro dia, dormimos e eu não ví a noite passar, outros ciclistas passando em um grande bando passavam agora gritando, buzinando e falando alto. O sol estava quente e o suor escorria pelo meu rosto. Olhei para o lado, olhei para todos os lados e Lara não estava mais lá. Fora um sonho, jamais a veria novamente, jamais nos faláriamos novamente, toda a tristeza do mundo me invadiu nesse momento.
—- Bonito, corre aqui, vem ver uma coisa, acho que achei uma casa de João de Barro, ali naquela árvore, olha. — Lara ria e seu sorriso parecia ganhar todo o campus, todo o céu e todo o mundo ao nosso redor. Queria correr e abraça-la com toda a loucura que fosse possível e desesperadamente. Queria pedir para ela nunca mais ir, nunca partir, nunca me deixar.
— Dá a mão Bonito, olha, parece que tem filhotes na casa do João de Barro.