Muriel Z
“ Oi.”
” Oi” - Que bom que você veio. Achei que não viesse...
” Por que você pensou isso? Claro que eu viria. Só não viria se tivesse algum imprevisto.”
Ela estava séria, algo incomum. O brilho do fim de tarde dava aos seus olhos azuis um tom lilás. Seus gestos eram curtos e graciosos. Ela dava um trago no cigarro e soltava a fumaça suavemente pelo lado oposto ao que estávamos sentados, como se desenhasse com a fumaça no ar. Seu charme era natural, quase hipnótico.
O DJ começou seu set de música ambiente com influências étnicas. Casais se levantavam devagar, indo em direção à pista. As luzes piscaram em sincronia, todos pareciam felizes, serenos. A música ditava o ritmo suave da noite.
“Muriel, me fala o que está acontecendo. Por que você se afastou? Como estamos... nós dois?”
Eu desconfiava havia algum tempo. Um sexto sentido me alertava, havia algum segredo, alguma coisa escondida no ar, mas eu a amava e no fim, só isso importava. Somos humanos, criamos dificuldades o tempo todo. É nossa natureza...
“Armand, estou apenas cheia de trabalho “ respondeu, tragando mais uma vez o cigarro. Jogou os cabelos vermelhos para o lado, e me lembrei de algo que lera em livros sobre linguagem corporal: esse gesto vindo de uma mulher podia indicar atração, interesse. Eu tentava decifrar seus sinais. Estava numa encruzilhada, sem saber o que fazer para entender o que ela realmente queria.
Era o ano de 2040. Já tínhamos rompido inúmeras barreiras tecnológicas. Curamos doenças, inclusive o câncer. Nano-robôs percorriam nossa corrente sanguínea, monitorando tudo. O trabalho como conhecíamos não existia mais salvo nas colônias espalhadas pelo sistema solar. Robôs faziam tudo. As pessoas viviam para serem felizes. Algumas ainda trabalhavam, por escolha.
Conheci Muriel em minha livraria. Hoje, a maioria prefere livros digitais instalados em chips no seu tálamo, conectados à rede mundial. A leitura é diferente: o conteúdo é transmitido ao cérebro e pode ser acessado por consulta ou assimilado durante o sono. Mas os livros em papel ainda resistem e com força graças ao tempo de lazer que todos têm.
Muriel apareceu um dia, séria, com um sorriso largo e cabelo vermelho liso. Procurava clássicos e livros de receitas.
“ Você come comida de verdade ou vive de pílulas e ração, como quase todos? “ - foi sua primeira pergunta.
Surpreso, respondi:
“Aqui está seu livro. Tom Sawyer é uma ótima escolha. E não sou muito fã de pílulas, não. Prefiro lasanha e massas. E você?”
Ela sorriu aquele sorriso enorme, não respondeu. Pegou sua sacola e saiu, com seus gestos curtos e decididos.
Muriel parecia sempre saber o que eu pensava. Tornou-se cliente assídua. E eu, sempre atento, a observava discretamente. Às vezes, ela me pegava no flagra.
“Seu nome é lindo, Muriel. O "Z" no sobrenome... significa o quê?”
Ela arregalou os olhos, deixou os três livros sobre a mesa que estava olhando e saiu correndo. Era sábado. A livraria estava cheia. Todos a acompanharam com o olhar e depois, quase em sincronia, voltaram-se para mim. Uma cena cômica, não fosse tão estranha.
Passei a pensar muito nela ou melhor, 24 horas por dia nela. O que gostava? Que músicas ouvia? Tinha família? Viajara para outros planetas?
Um dia, ela me surpreendeu:
“Fiz lasanha. É a primeira vez, não sei se ficou boa. Quer jantar em casa? Traz o vinho?”
Seu rosto corou. Eu sorri. Havia esperança.
“Claro! Hoje à noite? Algum vinho em especial?”
“Às 21h. Traz o que quiser. Vou levar essa coletânea do Mallarmé, adoro a poesia dele.”
Seu apartamento era pequeno, aconchegante, perto do Buddha Bar de Ibiza. Estava nervosa algo novo para mim.
“Quando quiser jantar, me avisa pra eu esquentar.”
Conversamos por horas. Descobri uma mulher culta, sensível, inteligente. Evitou o vinho. Sentados no sofá, toquei seu rosto e a beijei. Ela ficou nervosa, mas não se afastou.
Foi uma noite doce, delicada, cheia de cuidado e música suave de Chet Baker ao fundo. Senti, no fundo do meu ser, que estava a um passo de amá-la de verdade.
No bar, o DJ mudou o set para algo mais dançante, soul e disco music.
“Quer ir pra outro lugar, Muriel? Mais silencioso, pra conversarmos melhor?”
Ela assentiu com a cabeça.
Fomos até a praia. Estava quente. Aeronaves e drones cortavam o céu. Casais caminhavam ou riam na Caló des Moro. Os olhos de Muriel tinham agora um brilho estranho. Mudavam de cor e refletiam meu rosto com nitidez... como espelhos.
“Muriel, temos uma pequena história. Ficamos juntos duas vezes. Sei pouco sobre você, mas quero saber mais. Estou apaixonado por você.”
Seus olhos se encheram de lágrimas. Ela começou a chorar. Havia um segredo ali, algo que eu não conseguia desvendar. Pensei: com tanta tecnologia, ainda não conseguimos entender o que vai dentro de um coração.
Segurei sua mão. Ela tirou as sandálias, eu, os sapatos. Andamos descalços. Não sei por quê, mas sempre acreditei que andar de mãos dadas é um dos gestos mais bonitos do amor. E era.
Parados num quiosque, a música alta e uma TV no mudo mostravam uma propaganda da Plasma-B — fabricante de tecnologia. Robôs apareciam executando tarefas em fábricas, comércios, naves. Olhei de relance. Nada me chamou atenção... mas algo ali, no fundo, plantou uma dúvida em meu inconsciente que prosseguiu me martelando.
“Não sei se te amo, Armand. Mas sei que te quero. Quero viver com você. Só que o mundo está tão louco... Um fio tênue separa o amor do ódio. As pessoas estão violentas. Talvez haja guerras... aqui e entre planetas.”
Toquei seu rosto com os nós dos dedos, deslizei até sua boca e a beijei. A dúvida persistia. Lembrei da propaganda. Muriel era perfeita demais para ser de verdade. Mas jamais perguntaria. Eu a amava. E não queria perdê-la.
No quiosque, começou a tocar a mesma playlist do bar. Levantei e a chamei para dançar.
Eu a amava.
E se ela tinha data de validade...
...eu também tinha.